Pergunte à Raíssa
03/02/15 18:34Aí em cima você vê uma reportagem da “TV Folha” sobre intolerância religiosa. Isso existe no Brasil?
Pergunte à Raíssa.
Na escola, o coleguinha “valentão” dizia ter “nojinho” dela. “Ele ficava me xingando de macumbeira. Todo mundo ficava com nojo de mim.”
Pouco adiantava reclamar à diretora da escola: segundo seus pais, Alexandre Espanha, 40, e Vanessa Cordor, 37, ela era evangélica e não dava muita bola para o bullying contra a filha de oito anos.
De tanto ver os adultos dançaram para os orixás, Raíssa pediu aos pais para virar mãe de santo. Durante as férias escolares, começou sua iniciação no candomblé.
Chamado de “preceito”, o ritual é secreto e envolve 21 dias de “isolamento e resguardo”. Ela perdeu parte do cabelo e ficou várias horas trancada num quarto pequeno, com ícones de sua religião.
Raíssa confessa que ficou “um pouco irritada” com o tédio daquilo tudo, mas tudo bem, sabia que era para o bem maior.
Um vizinho da família discordava. Muito estranho, aquela menina toda de branco presa em casa… Não era de Deus. Ligou para a polícia e fez uma denúncia anônima de cárcere privado.
Quando o PM bateu na porta, Alexandre Espanha, pai de Raíssa e também de santo, perdeu as estribeiras. “Ele invadiu. Matei na hora que era evangélico.”
A ideia de que há uma “guerra religiosa” entre evangélicos e adeptos de religiões afrobrasileiras não é nova. No dia 29 de janeiro, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, bati um papo com um pastor e um babalorixá sobre o conflito. As faíscas foram tantas que um internauta sugeriu “pegar a pipoca” para acompanhar a transmissão ao vivo.
NÓ EM COBRA
Vamos por partes: nem todo pai de santo é santo, nem todo evangélico é intolerante.
O secretário municipal da Promoção à Igualdade Racial, Antonio Pinto, por exemplo, é “crente”. Fiel da igreja Batista, é também o primeiro a criticar quando agentes da própria Prefeitura de São Paulo fecham terreiros de umbanda ou candomblé.
Também lembra que padres e pastores são bem-vindos para acudir pacientes terminais em hospitais públicos ou privados. Um babalorixá, contudo, muitas vezes não passa da porta de entrada. O mesmo vale para ritos em cemitérios.
Muitos evangélicos, contudo, pensam diferente. O “chuta que é macumba” parece mais forte entre os neopentecostais –linha que inclui igrejas como a Universal e a Mundial do Poder de Deus.
É aí que desafina o Brasil “miscigenado, ecumênico e religiosamente sincretizado” que Martinho da Vila cantou. Cerca de 575 mil pessoas declararam pertencer à umbanda ou ao candomblé no censo de 2010, contra 42 milhões de evangélicos.
Líderes como o pastor Joaquim de Andrade, da Igreja Batista Ágape, são taxativos: ninguém pode partir para a agressão, como sair quebrando tudo em terreiros, mas tentar cooptar “pecadores” para a “verdade cristã” é válido, sim.
Ele já foi multado em R$ 1.000 pela Justiça por se vestir de branco (“como eles”) e distribuir panfletos evangélicos durante rituais de umbanda, em festa para Iemanjá, na Praia Grande (“um lugar público”), litoral de São Paulo.
O pastor Joaquim diz que, ao contrário de outros credos, o cristianismo é “fundamentado”, vide a Bíblia (versus a tradição oral da umbanda e do candomblé).
“Por exemplo, quando o espírito de Maria Padilha se manifesta da vida de uma pessoa. Se é homem, vai para o homossexualismo. Se é mulher, vai para a prostituição, o adultério, a pedofilia, esses absurdos.”
Para o professor da USP Reginaldo Prandi, as religiões evangélicas não toleram a ideia de múltiplos deuses. Já credos afrobrasileiros, em vez de ejetar, incorporam deuses de outras culturas. Mais ou menos como Roma fez ao incorporar o Olimpo grego ao seu rol divino.
A mãe de santo Juju de Oxum, 79, acha que o “abuso dos crentes está demais”, mas não gosta de falar no lado mais fraco da corda.
“Nós somos fortes. A gente não cai, não. Sei dar nó em cobra. Sei sorrir, sei cantar e sei chorar ao mesmo tempo.”