Convenção das bruxas, dos vampiros, dos golfinhos...
04/12/13 18:24– Quantos anos você tem?
– Depende.
– Como assim depende?
– Tenho 29. Mas, quando estou no personagem, são 350.
– Personagem?
– Eu era um rapaz do interior da Espanha. Aí apareceu um conde e me transformou em seu vampiro servo.
– Servo?
– Pra ser vampiro, não é só morder, que nem nos filmes de Hollywood. A gente fica como servo por 50 anos. Depois, se o vampiro que te transformou gostar, você continua vampiro. Ou ele mata você.
– Mas por que seu senhor te mataria?
Não é que ele esteja dando com a língua nos falsos dentes pontiagudos. Rodrigo olha pra mim como se dissesse “duh”: o que vai falar a seguir é tão óbvio que cansa sua beleza imortal, ressaltada pela cabeleira negra como graúna e por uma blusa vermelha com esvoaçantes babados no peito e na ponta da manga comprida.
– Claro, ou teríamos uma epidemia de vampiros, né?
Ele foi um dos participantes da 4ª Mystic Fair São Paulo, que aconteceu de sexta (29) a domingo (1º) no Transamérica Expo Center, na zona sul de São Paulo.
O pavilhão uniu adeptos de credos tão expansivamente agrupados sob o guarda-chuva do misticismo. No Censo de 2010, perguntadas sobre religião, 74.013 pessoas declararam seguir “tradições esotéricas” (0,04% da população). Estima-se, no entanto, que o número de simpatizantes engrosse muito esse caldo.
Rodrigo é um cara de família: está lá com mãe e mulher, seguidoras da religião wicca e vestidas a caráter –o que me faz pensar em animadoras de festa infantil caso o mago Paulo Coelho tivesse filhos.
A matriarca Regina, 47, ex-professora de ensino primário, porta um chapéu longo e pontudo. Ela se define como “bruxa do bem” e diz trabalhar “com coisas ligadas à natureza”.
O clã expôs no pavilhão uma amostra da loja Profecias, sediada na Galeria do Rock, no centro de São Paulo.
Pelo site da lojinha, você pode comprar vales de R$ 1 a R$ 1.000 para seu presenteado gastar em artigos como o livro “História Oculto do Satanismo – A Verdadeira História da Magia Negra (R$ 41), a adorável xícara de chá com desenho de gato preto (R$ 28) ou a baby look estampada com uma bruxinha na vassoura voando sobre a frase “garotas boas vão para o céu… e as más vão aonde querem” (R$ 22).
Já eu fui ao galpão para dar de cara com um homem fantasiado de golfinho, roupa feita de pelúcia azul. Andava por ali fazendo propaganda do stand Florais Golfinhos –um pessoal que fabrica essências marinhas e organiza tours para nadar com esses mamíferos aquáticos de “energia alto astral”.
BISCOITO CHINÊS
O problema para quem frequenta feiras esotéricas é que de vez em quando aparece uma jornalista metida a besta que talvez, nos anos 1990, tenha sido fã do filme “Jovens Bruxas” e usado um daqueles “anéis mágicos” que mudam de cor conforme o sentimento da pessoa.
Agora, contudo, talvez se você tentar vir com um papo de “xamanismo quântico” ou de golfinhos “balanceadores de energia”, ela erga a sobrancelha como se estivesse diante de um ser do outro planeta.
O que não seria tão absurdo assim, porque talvez ela tenha acabado de ter a mão lida por um mago do “comando estelar” que evoca uma tal de “fraternidade branca e intergalática”…
Talvez, num outro dia qualquer, essa jornalista metida a besta fosse eu. Mas, como disse meu último biscoito da sorte chinês, preconceito é uma prática terráquea bem azedinha. E, para esse batalhão acostumado a ser alvo de chacota, dá sempre pra tirar da manga a máxima que Miguel de Cervantes fez seu Dom Quixote declamar no século 17:
Yo no creo em brujas, pero que las hay, las hay.
Rita Lee cantou a mesma bola nos místicos anos 1970, em “Yo No Creo Pero” (“segura a barra/ a bruxa está solta/ não dê moleza/ ela pode estar na mesa”).
Quem não dá moleza para preconceitos contra sua religião é Claudiney Prieto, 36, idealizador da Mystic Fair e fundador da AbraWicca.
“Ser bruxo no Brasil é compreender que a pluralidade é uma realidade universal. Com tantos caminhos religiosos se considerando únicos no país e tentando impor suas visões aos não praticantes, a wicca apresenta a flexibilidade e o respeito a todos os caminhos.”
Claudiney, que também se chama Lughson (“significa filho de Lugh, deus celta do sol”), diz ser “elder”, uma espécie de PhD da bruxaria. Estudou filosofia na faculdade, mas logo abandonou. “Digo que fui enganado. A universidade não é aquilo que você imagina. Achava que ia estudar mitologia…”
Muitos visitantes da feira estão paramentados (falou-se até de vikings na área). Ele passaria batido.
Combina jeans e camisa Lacoste preta, com um grande jacaré na estampa. No pescoço, um círculo de prata representa o “deus tubarão, o mais poderoso da cultura havaiana”. No pulso direito, uma tatuagem com hieróglifos que homenageiam Antinous, amante preferido do imperador romano Adriano, no século 2 (“o deus da homossexualidade sagrada”). No outro braço, um relógio laranja-cheguei.
Já chegou a hora de fazer estereótipos sumirem, mas Claudiney sabe que isso não acontecerá num passe de mágica. “Quem anda de chapéu não é wicca de verdade. Ser bruxo é tão sério quanto ser um padre ou um monge. Claro que pessoa excêntrica há em todo lugar. Não tem aqueles católicos que se flagelam?”
Pouco antes, o “elder” falava sobre descobrir seu “animal de poder” para cerca de 50 pessoas sentadas em cadeiras de plástico brancas (daquelas que se compra para receber amigos de sunga e pochete num churrasco em volta da piscina), numa baia improvisada com divisórias típicas de escritório.
Alguns estranham o misticismo que paira sobre o centro de exposições. Fernando, 19 anos, estudante de informática com cabelos ondulados divididos no meio estilo Caetano Veloso anos 1970, não parece confortável.
Descalço, de jeans e camisa desbotada com o logo da Guess gritando no peito, ele cuida do stand para o pai enquanto ouve Soundgarden pelo fone de ouvido.
A família vende diários de viagem com capa de couro (de R$ 15 a R$ 70). Lá o público alvo pode ser uma bruxa à procura de caderno para anotações, exemplifica Fernando –que diz não ser “um cara dali”.
Foi ele quem me falou “de uns vikings do outro lado” do pavilhão (perdi essa).
VEJA BEM
Outro que se considera um pouco forasteiro: Carlos Maurício Prado.
“A gente não tem nada a ver com pajé, leitura de mão…”
Ele seria mais, aí sim, um cara de visão: tenta emplacar a “yoga para os olhos”.
Os principais produtos de sua barraca eram o óculos da tal yoga (R$ 90) e o livrinho de “ginástica cerebral” (R$ 40).
O primeiro é um óculos sem lente com vários buraquinhos em forma de pirâmide. O rapper Kanye West usa modelo vazado parecido, mas duvido que com o mesmo propósito zen-ocular.
“A luz passa pelos furinhos e modifica a forma como incide nos olhos. Você precisa exercitar a vista para enxergar”, explica o “professor Carlos”, que jura não usar óculos de grau há 15 anos (“tinha 2,5 de miopia”).
Engenheiro químico que desistiu da profissão, o carioca também é entusiasta da “brain fitness”. Nas páginas de seu produto, garante, há uma série de exercícios para fazer com que os lados esquerdo (da razão) e direito (emoção) do cérebro parem de disputar ping-pong um contra a outro.
Aconselha beber muita água (“é a gasolina do cérebro!”) e massageia a testa com dois dedos, mais ou menos como Daniel San treinava encerando paredes em “Karatê Kid”.
Por e-mail, na mesma noite, me envia a prática:
PONTOS POSITIVOS – Durante 1 minuto, massageie, no centro da testa, acima dos olhos, pontos da acupuntura, neurovasculares. Isso aumenta o fluxo de sangue no lóbulo frontal, a parte rica e nobre do cérebro. Excelente para rapidez de raciocínio, planejamento, criatividade. Também evita o branco na hora da prova. A massagem pode ser no sentido horário ou anti-horário, conforme a preferência de cada pessoa.
Conforme a preferência de cada pessoa. Eis uma boa frase para resumir o espírito do feirão cósmico-intergalático-xamânico-quântico.
Afinal, você pode até não acreditar em diversidade religiosa. Pero que las hay, as hay.