Mago João Scarceli no salão de seu ‘castelo’, no extremo sul paulistano (Gabriel Cabral/Projetor)
“Hmmmmm. Sua linha da vida é grossa. Em dez anos, você vai ter um problema de circulação sanguínea. Minha dica é: corte as gordurinhas! Aí fica supimpa a saúde.”
Avistei o supimpa mago Scarceli, 39, pela primeira vez na “maior feira mística da América Latina”, no domingo que inaugurou dezembro.
Especialista em quiromancia chinesa, técnica de ler as mãos, ele atendia uma mulher rechonchuda–que acenava efusivamente com a cabeça para cada orientação sua.
Eis o homem: túnica vinho até os pés, com acabamento dourado na gola e nos punhos, combinando com seu cabelo loiro escorrido feito espaguete. Algo entre um professor de Harry Potter em Hogwarts e alguém que assistiu a muito “Planeta Xuxa” nos anos 1990.
“Um dos quatro palmistas capacitados na América Latina”, Scarceli deu consultas “fast-food” (menos de um minuto) a dezenas de mulheres. As sessões foram transmitidas ao vivo pela Mundial FM, rádio “de esoterismo e autoajuda” com antena na avenida Paulista.
Havia fila para entrar na gaiolinha envidraçada que fazia as vezes de estúdio, no Transamérica Expo Center, um daqueles pavilhões que recebem dezenas de feiras ao longo do ano, do 22º Congresso de Produtores de Açafrão do Vale do Jequitinhonha à 7ª Convenção de Fabricantes de Perucas para Beagles.
No Censo de 2010, 74.013 pessoas declararam seguir “tradições esotéricas” (0,04% da população) como religião, fora a vasta gama de simpatizantes.
Curiosa sobre o processo todo, ofereci a mão a palmatória. Enquanto rabiscava minha pele com caneta Bic azul (fazia cócegas), o leitor de mãos soltou algo sobre “linha de trabalho beeeem comprida”.
Agradeci, fui embora e encerrei o expediente. Uma semana depois, procurei-o no Facebook. Lá sua descrição se resumia a: “EU SOU O MAGO SCARCELI”. Adicionei. No dia seguinte, a bordo do carro do jornal, risquei 42 quilômetros de São Paulo com ele. “Vamos para o meu castelo.”
Saímos eu, ele, o fotógrafo e o motorista, da avenida Paulista até Parelheiros, extremo sul, uma das regiões mais pobres de São Paulo.
Scarceli mora na periferia depois de sete anos instalado na praça 14-Bis, na Bela Vista (“prédio bacana, dois por andar”).
Vendeu o apartamento que dividia com seu companheiro após receber “uma mensagem de Metraton, o anjo mais próximo de Deus”. Enquanto me conta sobre as maravilhas da nova vizinhança (“o ar é tão puro!”), lembro imediatamente de “Dogma”.
No filme de 1999, o ator britânico Alan Rickman é Metraton, e a cantora canadense Alanis Morissette, Deus –e um Deus que usa saia de tule branca (tipo bailarina) e terninho com requintes de papel alumínio. Cabe a ele ser mediador do (a) Senhor (a), dono de uma voz tão potente que mata qualquer um que a ouvir.
A voz de Scarceli, por outro lado, é doce e levemente cantarolada, ideal para dublar um ursinho de pelúcia em comercial de amaciante. Ele tem a mania de usar diminutivos em suas sentenças. O filho de “mamãe evangélica e papai católico” assim o faz, por exemplo, para relembrar sua formação numa “escolinha dominical”.
Aos 13 anos, contudo, ele se desviou do rebanho católico para ser a ovelha negra da família. Foi quando conheceu seu Antônio, vizinho da avó que, apesar do nome, era “um mestre chinês da leitura de mãos”. O menino João virou discípulo aplicado.
Décadas depois, já iniciado em várias correntes místicas, da quiromancia ao xamanismo, com um gosto especial pelo Santo Daime, Scarceli não titubeou ao receber o recado de Metraton. Mudou-se para Parelheiros. “Lá precisam mais de mim”, diz no Km 3 da nossa jornada.
Na região central, cobrava R$ 50 por consulta. Para os novos vizinhos, a fatura caiu: R$ 30. O mago continua atendendo no Espaço Solar Terapêutico, na Vila Mariana, por R$ 80 a sessão. “Lá é aquela elite, né? A pessoa tem unha encravada, não sabe se abre a quarta empresa…”
Ele diz ter encontrado na periferia, “onde o povo só conhece igreja e macumba”, problemas mais reais, como “marido que espanca mulher”.
MEU CASTELO
Encontrou também sua residência, que olhando assim de perto não é exatamente o que Cinderela ou Bela Adormecida procurariam nos classificados. Seria como as outras casas de tijolinho dessa região com déficit de infraestrutura e superávit de mato, não fossem os muros azuis emulando a arquitetura medieval europeia (recortes no parapeito que parecem uma dentição banguela, alternando um tijolo sim, outro não).
Pagou R$ 35 mil pela residência de dez cômodos, fora a laje, onde armazena aparelhos de ginástica antigos (daqueles que compramos por impulso no Polishop) e seu varal, com várias cuecas recém-lavadas ainda pingando.
Mora lá com Sílvio, seu marido, e a enteada Fefe, 32, uma morena bonitona, tatuadora. Em meia hora, ela nos recepcionará de macaquinho jeans, top branco e argolão, antes de jogar as chaves do segundo andar para abrirmos a porta assim que o motorista estacionar em frente ao castelo.
Unem-se aos humanos a gata Meg Luz, que Scarceli crê ser a reencarnação de outro bichano comido por vizinhos coreanos, os vira-latas Chocolate e Lady Gaga e jabutis enormes, acastelados numa trincheira de pedras no pátio da frente.
Por R$ 250, Scarceli aluga um espaço anexo para um terreiro de macumba. Num sinal vermelho, ele realoca o cabelo clareado à base de camomila e também uma pulga atrás da orelha. “É tanta igreja evangélica… Precisa ter um batuquinho pra dar a diferença, né?”
Ideias sobre pluralidade encharcam o discurso do mago. Os vários altares que mantém no salão de seu castelo são um bom exemplo: estátuas de santos católicos como Expedito e Francisco de Assis, um quadro de Iemanjá, bonequinhos de preto velho e de duendes, impressões emolduradas em papel A3 e A4 de extraterrestres (“antepassados”), pedras energéticas e uma garrafinha de plástico com chá de ayahuasca –um cheiro fortíssimo, que me faz pensar num drinque com rum e molho de barbecue para os nuggets do McDonald’s.
Foi durante uma imersão daimista que Scarceli diz ter presenciado “um quadro de Nossa Senhora virando cabeça de bode”. Ele próprio, na visão, sentiu seu maxilar se deslocando até que virasse um lobo.
Um dos altares na casa do mago (Gabriel Cabral/Projetor)
Scarceli fala com desembaraço da elasticidade de seu “santuário ecumênico”. Sua filosofia é: quanto mais tolerância, melhor.
Até porque ele não é apenas um mago. É um mago homossexual na periferia paulistana.
Quando pergunto se ele já se sentiu alvo de preconceito, ele pensa um pouco antes de responder: hoje, não.
Mas acredita ter sido expulso na juventude do Cefam, programa já extinto de formação de professores, por sua opção sexual. “Gay não pode dar aula para criança…” Ele, que ainda quer cursar psicologia, diz que adoraria dar aulas para “acordar coraçõezinhos das crianças”.
Por ora, afirma ajudar os outros com seus poderes de mago de verdade (“o Paulo Coelho a gente chama de pateta”).
“Me considero muito idealista. Quero ver as pessoas melhorarem”, diz enquanto puxa um cigarro de palha Souza Paiol, com um cauboi de jaqueta de couro estampado no maço.
Sob a manga de sua bata, dá para ver um vislumbre de seu relógio de pulso branco, com visor estampado de zebrinha, a moldura cravejada de brilhantes genéricos. Km 40 da viagem. Estamos quase lá.
MEU AMOR
Para combinar com o relógio de zebrinha, Scarceli usa bata, calça e tamanco brancos, com quatro anéis de prata e a “aliançazinha do meu amor”.
O amor se chama Sílvio e está com ele desde 1999. Conheceram-se numa casa noturna, A Lôca, pico “gay friendly” na rua Frei Caneca, apelidada de “Gay Boneca” por alguns frequentadores.
Scarceli tinha acabado de terminar o namoro com “uma vampira”. Estava arrasado. “Ela queria tirar meu sangue na seringa para bebê-lo numa taça”, diz ele, desgostoso da ideia.
A mãe evangélica não queria vê-lo cabisbaixo e entregou “uns R$ 50” para o filho espairecer n’A Lôca.
Chegando lá, ele deu de cara com a porta: Sílvio, um artista plástico “que gostava de beber muita cerveja”, moreno mais alto e mais velho, era o promoter do local.
Apaixonaram-se e estão juntos até hoje. Têm planos para oficializar a união num cartório em breve.
MEU GUARDA-ROUPA
Durante o trajeto de uma hora e meia, conversamos sobre extraterrestres fazendo turismo na Terra, pajés que removem pedras de areia da pele das pessoas e a arte de se projetar para fora do corpo como se sua alma quisesse sair rapidinho para dar um telefonema.
Para a maioria das pessoas, o misticismo existe como uma espécie de “extra do DVD”, que só está lá para complementar o produto principal –no caso, uma religião “séria”.
Por exemplo: ler horóscopo no jornal e usar calcinha branca (paz), vermelha (paixão) ou amarela (dinheiro) no Réveillon pode. Mas seria “coisa de doido” se entregar de alma e corpo às tradições esotéricas. Scarceli acha isso “uma bobagem”.
Meu entrevistado troca de roupa para nossa sessão de fotos. Calcula ter uns 30 modelitos de mago. Sai do quarto vestindo uma túnica branca de gola levantada à la Elvis Presley, com bicos em riste e detalhes dourados. Tem uma cruz xamânica azul bordada na altura do peito. Uma tiara coroa sua cabeça tal qual um hippie saído do elenco de “Hair”. Mas seu acessório se diferencia pelo pingente de pentagrama (a estrela com ponta para cima).
Sua inspiração “fashion”, conta, não é de hoje. Mais precisamente, remonta ao século 14.
Ele diz que, num episódio de regressão, descobriu que foi um mago por volta de 1350, na região hoje conhecida como Holanda. Assim se viu no transe: “Estava sentado numa mesa, diante de uma bola de cristal com quatro garras de madeira entalhada. Minha capa caía, dava três voltas e tinha escamas de ouro. Carregava uma varinha do tamanho do meu antebraço!”
MEUS AMIGOS
No dia da entrevista, Scarceli tinha acabado de apresentar um programa na Mundial, ao lado de Yeda Canto, uma “sensível e extremamente criativa paulistana” (palavras dela) que, segundo a própria, costumava cantar na grama da casa de Chico Buarque, em encontros nos anos 1960 que incluíam Caetano Veloso e Geraldo Vandré.
Eles pagam R$ 2.000 por mês para poder usar a estrutura da rádio durante meia hora por semana. A grade também tem programas como “Stop a Destruição do Mundo”, “Implante um Novo Sorriso com Dr. Paulo Leal” e “Zíbia Gasparetto conversando com você”.
No YouTube, dá para assistir a uma gravação da dupla Scarceli & Yeda, que começa com a saudação do mago:
Bom dia a todos os ouvintes conectados com essa energia da grande Fraternidade Branca e dos amados irmãos extraterrestres intergalácticos. Uma boa madrugada pra vocês.
Scarceli acredita que uma nova era está à espreita, “com a ajuda dos nossos amigos ETs”. Muitas correntes esotéricas creem que a vida na Terra pode ter começado com uma ajudinha de viajantes espaciais, o que abrange cruzamento genético de espécies.
Sobre a Fraternidade Branca: é, segundo ele, um clubinho frequentado pela fina flor da religião. Colaborar para o desenvolvimento espiritual do planeta seria a grande missão dessa “Liga da Justiça” sagrada, que traz Buda, Jesus Cristo, Odin, Tupã e Maomé entre seus mestres.
“Jesus era um grande mago. Buda foi o mais poderoso. Agora Jesus está se preparando para assumir cargo de Senhor do Mundo na Fraternidade”, conta.
Se a Fraternidade é branca, multicolorida é a visão de mundo desse ex-funcionário do Banco do Brasil que, após anos ganhando “mil e poucos reais” para trabalhar das 6h às 15h, decidiu entrar em sintonia com seus vários eus interiores. Abençoados sejam.
Detalhes no muro da residência em Parelheiros (Gabriel Cabral/Projetor)