Sob o domínio do ayahuasca
20/08/14 07:00Era, desde o princípio, um legítimo programa de índio.
O artista plástico Ernesto Neto, 50, importou do Acre para Instituto Tomie Ohtake, na zona oeste paulistana, um “ritual terapêutico” do povo indígena Huni Kuin, na madrugada desta segunda (18).
Ele já levou a proposta no Guggenheim de Bilbao. O diretor do museu espanhol, a princípio, não quis. Só cedeu após Ernesto rebater tratar essa “medicina sagrada” como droga dava no mesmo que “abominar a religião”.
Em São Paulo, teve apoio dos curadores da mostra “Histórias Mestiças” para costurar com linha verde uma grande cabana branca, no segundo andar do espaço. Panos caíam do teto na forma de gotas gordas e cheias de cravo.
Fez um círculo com 25 almofadas de babados amarelos, daqueles que lembram o tapete do banheiro de uma tia-avó. A cerimônia foi liderada por um pajé com cocar disposto na cabeça feito viseira de tênis, Yawa Bane, 31. Entre “nauás”, os brancos, é Leopardo. “Leo” tem fotos no Facebook pintando o rosto de “nauasíssimos” na Noruega.
Era perto da meia-noite quando virei meu shot de ayahuasca. Preparado com planta e cipó amazônicos, o chá alucinógeno é o mesmo de religiões como o Santo Daime.
O pajé serviu um copinho de líquido marrom. O cheiro lembrava Yakult com o molho Barbecue dos nuggets que eu comia na infância (tenho um olfato peculiar).
Para quem é tomado pela “Força” (nome dado ao efeito da dose), o resto é história. E uma em que xamãs rebolam num cabaré atingido por raios —juro que aconteceu.
Antes de a luz apagar e a mente acender, o “nauá” Ernesto, com colar de miçangas semelhante aos vendidos por hippies na avenida Paulista, me falava sobre “valorizar a cultura indígena”. Inalava rapé (plantas e tabaco moído) com uma pazinha de casca de árvore ao me contar que em 2013, no primeiro trago do chá, viu a mulher flutuar no espaço —jura que aconteceu.
O artista batizou a instalação de “Em Busca do Sagrado” e explicou a jiboia desenhada no pano branco: é a “Força” que te guia nessa jornada.
Três horas depois, Ernesto rastejava de quatro pela cabana, atrás de um chocalho de tampas de garrafa PET. Depois segurou meu rosto com as mãos: “Você está linda”.
A vida pode mesmo ser linda sob o domínio do ayahuasca. Há um mês tomei o primeiro gole, dentro de outra linha, União do Vegetal (com elementos do cristianismo), num sítio perto de Ubatuba, litoral norte de São Paulo.
Pétalas douradas caíam enquanto eu falava telepaticamente com um amigo filipino —que não era meu amigo nem filipino, e sim um japonês cutucando a orelha de outro homem para “tirar um pouquinho de amor de lá”.
Chorei porque Gal Costa cantou “Força Estranha”. Mais estranho foi o flash dos Simpsons no sofá, junto com a musiquinha de abertura do desenho.
Lembro do pavor de nunca mais voltar daquela loucura. Olhava o relógio. O ponteiro era o homenzinho do Johnnie Walker correndo em círculos.
LAVOU, TÁ NOVO
Senti vontade de vomitar, efeito colateral comum. Alguns participantes relatam a sensação de ter feito xixi na calça, o que não acontece de fato.
Me tranquilizavam: não se passa mal, “passa o mal”, ao lidar com emoções profundas dentro de você –é o tal do “autoconhecimento” prometido pela experiência amazônica.
A mente perde noções de tempo e espaço e fica superpovoada com visões. Há quem descreva uma longa conversa com um hamster morto na infância. Um rapaz me garantiu ter “visto o universo”.
No Tomie Ohtake, havia três baldes azuis “para fazer a limpeza”. Mas desta vez mal percebi a “Força”.
No início do ritual, luzes azuis como as do game “Tron”. Senti algo tremer, como num terremoto com chão de gelatina de uva.
Meu cérebro traduzia cânticos do pajé, numa língua indígena, para “Djavanês”, formando frases como “o tabule sambou na estrela do mar”.
Comigo, parou por aí. Após uma crise de choro, uma conhecida galerista dizia estar “curada”. Um homem viu o ambiente coberto de cobras pontilhadas por pedacinhos de plástico colorido.
Seis da manhã. O sol nascia, mas não falou comigo.