Islamofobia à brasileira
15/01/15 13:35Jogaram pedra na Sarah. Cuspiram na Ana Paula. Ameaçaram matar Luara.
Para essas três muçulmanas, o mito do Brasil plural e tolerante foi por véu abaixo nos últimos dias. Após o ataque ao “Charlie Hebdo”, atos anti-Islã ricochetearam pelo planeta feito bilhar. Por aqui, a islamofobia subiu pelas paredes.
Em São Paulo, a Mesquita Brasil, maior templo da religião no país, foi pichada no dia seguinte à chacina. Até a noite desta terça (13), o piche continuava lá: “Je Suis Charlie”, mote solidário às vítimas francesas que viralizou nas redes sociais com a força de dez “Guarani-Kaiowá”.
A professora de teatro Sarah Ghubara, 27, recebeu uma pedrada a caminho de um posto de saúde na capital paulista, onde tinha consulta médica. “Quando passei por um terreno baldio, ouvi a voz de um homem me chamando de muçulmana maldita. Alhamdulillah [graças a Deus] a pedra pegou na minha perna. Pelo impacto, se tivesse pegado na cabeça, teria feito um estrago.”
Ela voltou para tentar identificar seu agressor, sem sucesso. “Ele saiu correndo para o outro lado da rua.”
Sarah lembra outros episódios de agressão. Um “irmão muçulmano teve seu para-brisa arrancado por maldade”, em frente a uma mesquita, exemplifica.
Ela conta que se “reverteu” há quatro anos. “O Islã acredita que todos nascemos muçulmanos, mas no Ocidente acabamos por crescer no contexto cristão. Então você se converte a uma religião e, quando vira muçulmana, reverte a situação.”
“A revertida” reclama que o Ocidente tem dois pesos e duas medidas para conflitos mundiais. No Facebook, publicou uma foto lembrando os estimados 2.000 mortos na Nigéria, numa onda de atentados na mesma semana do “Charlie Hebdo”. Seria o maior massacre do Boko Haram, que defende um Estado sob a sharia (lei islâmica). “Je suis África… Charlie é meu ovo. (eu não tenho ovo, mas se tivesse seria)”, escreveu.
A publicitária Ana Paula Barcellar, 27, também passou por apuros. Como de costume, ela pôs o véu e saiu pelas ruas de Bueno Brandão, cidade mineira com 11 mil habitantes, daquelas onde todo mundo se esbarra na praça central.
Levava o filho de seis anos ao único clube aquático do município –usa só o parquinho e a quadra “pois não pode entrar de roupa na piscina”.
Devido a um problema de visão, ela só distinguiu vultos do casal à sua frente. Não conseguiu reconhecer o autor da cusparada que levou, seguida de um “conselho” para ela, “a assassina”. “Ninguém quer você aqui, não”, ela reproduz o que escutou do homem.
Quem passava por ali seguiu a vida como se fosse um dia como outro qualquer.
Não era. Mais precisamente, era 8 de janeiro, um mau dia para ser muçulmano, segundo Ana Paula.
Na véspera, dois homens gritaram “Allah akbar” (Alá é grande) antes de abrir fogo na redação do “Charlie Hebdo”, o jornal que desenha Maomé dando um beijo molhado na boca de um cartunista com o mesmo desembaraço que retrata cardeais católicos subindo a batina e enganchando uma ciranda erótica.
Ana Paula se converteu ao Islã quando tinha 17 anos, por influência de uma amiga libanesa. Enquanto a maioria das amigas sonha com véu e grinalda, ela prefere só o véu. Alterna no Facebook fotos de gatos fofinhos com ilustrações em defesa do traje religioso –como uma bonequinha de traços mangá que comemora: “Hijab é liberdade!”.
No dia a dia, o preconceito é menos escancarado, embora esteja lá, diz. Vai do assédio das igrejas evangélicas à escola do filho, “que não tem nada de laica e direciona tudo ao cristianismo, do coelhinho da Páscoa à leitura da Bíblia”.
É GUERRA?
Nos dias consecutivos ao atentado, condenado por grande parte da mídia árabe, a barra pesou para muçulmanos. Líder da extrema-direita, Marine Le Pen declarou: “O islamismo declarou guerra a nosso país”.
Recém-lançado, o livro “Submissão”, de Michel Houellebecq, virou best-seller ao imaginar uma França governada pela fictícia Fraternidade Muçulmana em 2022. O partido de mentirinha defende conversão ao Islã, patriarcado, poligamia e mulheres usando véu e virando donas de casa.
Assim que soube do atentado, o sheikh Jihad Hammadeh, da Mesquita Brasil, lamentou. Pelos mortos e pela comunidade muçulmana, inclusive a brasileira, com 35 mil membros, segundo o censo do IBGE em 2010 . “Pensou-se: pronto, vem ainda mais discriminação para o nosso lado”, disse em entrevista à “TV Folha”.
“Uma muçulmana foi atacada pelas costas a murros, socos e xingamento de ‘terrorista’. Mas isso é exceção, sabemos que o povo brasileiro não é assim”, afirmou o sheikh, sem identificar a vítima.
Exceção que virou regra na vida da estudante de psicologia Luara Oliveira, 21. Desde que aderiu ao Islã, nove meses atrás, ela passou a receber “olhares brutos” nas ruas, bem mais ameaçadores do que outro gracejo recorrente –pessoas que gritam do nada “inshalá”, bordão imortalizado pela novela “O Clone” (2001-2002) e que em português pode ser traduzido como “se Alá quiser”.
Após o ataque na França,o tom subiu. Luara fazia cooper em Brasília, acompanhada de sua mãe, quando o preconceito puxou seu pé. Um carro cinza encostou na dupla, e um homem gritou que mataria “todas essas desgraças”.
Ela também ficou com medo do ódio que contaminou a internet feito perfume ruim em elevador.
Há vários exemplos pinçados em sites e redes sociais. Enquanto Silvio pondera que “a diferença entre o muçulmano radical e o moderado é que o moderado ‘apenas’ irá aplaudir enquanto o radical nos corta a cabeça”, Anderson lança a pergunta no ar. “Como ser tolerante com os intolerantes?” Alexandre alerta: “O perigo muçulmano já ronda o Brasil há anos, especialmente em Foz do Iguaçu”. Juliana vai direto ao ponto. “Já explodiu um muçulmano hoje?”