As dúvidas existenciais de Henry Sobel
21/08/14 08:00“Yesterdaaaaaay”, Henry Sobel, 70, canta a música dos Beatles sobre um passado em que os problemas pareciam tão distantes.
Sobre a cabeça do rabino, fora a famosa quipá vinho, há um móbile do artista norte-americano Alexander Calder. Pairam também algumas “dúvidas existenciais”.
“Estamos numa nova capítulo da vida”, diz o rabino americano do sow-ta-kee que não vai embora, mesmo após quatro décadas no Brasil. “Será que sou um sucesso ou um fracasso?”
É o que Sobel reflete ao longo de uma hora e meia e cinco bicadas no copo d’água, enquanto engole a seco passagens difíceis de sua trajetória e fala abertamente sobre direitos humanos na Israel bélica de hoje e no Brasil militar de ontem, maconha, gravatas, tênis, traição e Edir Macedo.
O rabino aparece de pijama quadriculado e meia na sala de seu apartamento na rua Rio de Janeiro, em Higienópolis, um duplex com vasto jardim.
Ele se mudou para Miami há menos de um ano. Na prática, contudo, Henry Sobel mal saiu daqui. Celebra o casamento da filha única, Alisha, no dia 1º de novembro, e fica até o fim do ano para organizar a mudança “definitiva” –entre aspas porque ele já faz planos para o retorno.
Miami será uma temporada para “recarregar baterias humanas e espirituais” e jogar muito tênis, atividade que diz ter negligenciado em prol da carreira religiosa. “Tem que fazer exercício, porque realmente a barriga não dá.”
Enquanto estiver fora, as chaves do imóvel paulistano ficarão com “alguém de confiança”, afirma. “Vou deixar 60% das minhas coisas aqui para poder voltar.”
No ano passado, o rabino que celebrou os casamentos de Luciano Huck/Angélica e Marta Suplicy/Luis Favre anunciou com ares de grand finale: já deu. Hora de retornar aos Estados Unidos natal.
Em 31 de outubro de 2013, o Memorial da América Latina sediou uma homenagem ao americano pródigo que à casa tornaria após 43 anos vivendo em São Paulo. O ex-presidente Lula mandou uma carta para cortejar “esse amigo, que, mesmo fora, seguirá sendo um grande brasileiro em nossos corações”.
Pouco depois Sobel foi morar num apartamento em Williams Island, região nobre de Miami, com a mulher, Amanda. Ela é uma senhora enxuta que passa correndo por nós, um cometa que deixa como rastro as longas madeixas brancas e os passos apressados, encarapitados numa jovial calça jeans.
“Pretendo voltar daqui a dois, três anos para retomar os meus contatos”, ele conta. “Falo daqueles que acreditavam em mim. Por favor, perdoe a falta de modéstia, mas tenho muitos amigos, muita gente boa.”
Sobel vai para o quarto e, dez minutos depois, reaparece na sala. Agora, de camisa social, calça e uma gravata torta para a direita, de estampa marrom com listras diagonais brancas. Leia abaixo trechos da conversa.
GRAVATAS
O furto de quatro gravatas de grife (Louis Vuitton, Armani, Giorgio’s e Gucci) na Flórida, em 2007, foi o “ponto de partida” para esta nova fase da vida, “de autoavaliação”.
Na ocasião, atribuiu o delito a uma confusão mental provocada por uso de medicamentos. Pagou uma fiança de US$ 3.680 após passar uma noite preso.
“Foi uma falha moral minha”, reconhece hoje. “Por que eu fiz aquilo? Como se justifica? Ainda não achei a resposta, mas certamente vou trazer uma de volta de Miami.”
MACONHA
Fã de James Brown e de Beatles, o rabino conta que, em Woodstock, fumou, tragou e gostou de maconha. Era 1969, e ofereceram-lhe a erva em dois workshops do festival.
Foi a única droga que usou, diz. “Fiquei perto da minha base. Em nenhum momento perdi a noção sobre mim mesmo.”
Desde que “não prejudique terceiros”, ele acha válido conhecer outros tipos de droga. “Cada um tem o direito e o dever de experimentar e chegar à conclusão se é bom ou ruim.”
TEMPLO DE SALOMÃO
Recebeu o convite para o Templo de Salomão do Brás. A Igreja Universal juntou da presidente Dilma ao rabino Michel Schlesinger, sucessor de Sobel na presidência da Congregação Israelita Paulista, para a inauguração do endereço –uma réplica da construção sagrada para os judeus e destruída duas vezes em Jerusalém, a última 1944 anos atrás.
Sobel não foi. E, apesar de considerar o bispo Edir Macedo “uma boa pessoa, muito bem intencionada”, critica seu novo visual.
“Ele se vestiu de quipá e talit, que é nosso xale de oração. Ele se vestiu como um religioso da religião judaica. Acredito que esses símbolos não devem ser imitados. Não se usa símbolos alheios que só podem confundir terceiros”, diz.
“Quero ser bem claro: há tanta coisa boa dentro da religião dele que não precisa recorrer a símbolos judaicos. Judaico é para judeu.”
ISRAEL VS. PALESTINA
O atual conflito entre Israel e Palestina, ele ressalta, infelizmente não é o primeiro e dificilmente será o último. Não vê boa vontade nem no primeiro ministro israelense, Benjamin Netanyahu, nem no Hamas. Tampouco acha que há “interlocutores capacitados para negociar a paz no Oriente Médio”.
Para o rabino, “todo mundo tem direito e dever de se proteger”. Mas é taxativo ao defender que “dois povos merecem dois Estados”, e que “nenhum povo é melhor nem pior do que o outro”.
VLADIMIR HERZOG
Em 1975,Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura e filiado ao Partido Comunista Brasileiro, morreu nas dependências do DOI-Codi em São Paulo. Os militares cravaram em seu atestado de óbito: suicídio.
Herzog era judeu, e mandava a tradição que ele, um suposto suicida, fosse enterrado com “desonras”, em área marginal do cemitério israelita do Butantã.
Sobel não comprou a versão oficial.
Ao preparar seu corpo para o funeral, um funcionário da Congregação Israelita Paulista viu marcas de tortura. Sobel era um jovem rabino, que substituía o primeiro na hierarquia da CIP, então fora do país. Peitou a ditadura e avisou que Herzog teria um enterro “normal”. Era o mesmo que dizer em alto e bom som: Herzog não se matou. “Queria torná-lo inocente de um assassinato institucionalizado.”
Dias depois, o rabino participou de uma histórica celebração ecumênica na praça da Sé, em memória a Herzog, organizada por Dom Paulo Evaristo Arns (“um gigante que me ensinou o significado de liderança espiritual”).
“Senti medo em todos os momentos”, diz. Conta que três militares vieram no escritório da CIP. “Rabino, o lugar do senhor é na sinagoga. E deixe o cardeal rezar na igreja dele”, relembra o diálogo dos “visitantes”.
“Era o Coronel Marques, me lembro dele, vejo na minha frente. Respondi: ‘Então vamos fazer um acordo. Eu fico na sinagoga amanhã, e o senhor não tome decisões sobre onde estacionar seus tanques na vizinhança da catedral.”
PAI DA NOIVA
Os preparativos para o casamento da filha única, Alisha, estão sendo “uma adrenalina fora de série”.
A cerimônia para mil pessoas no clube Hebraica, nos Jardins, acontecerá uma semana após o segundo turno das eleições, com o “amigo de verdade” Geraldo Alckmin e dom Cláudio Hummes entre os convidados. “Vamos dançar muito.”
“Não chamei Dilma”, diz enquanto ajeita a quipá na cabeça e as ideias na ponta da língua. “Não seria natural convidar só por ser presidente.”
TÊNIS
Ele quer jogar mais tênis –e vê na atividade um paralelo com esta nova fase da vida.
“Quando ganho o primeiro set, jogo o segundo. E depois o terceiro. Mas, se começo a perder, dificilmente consigo chegar até o segundo set.”
Henry Sobel percebe aí “a moral da história”.
“Já venci na vida algumas vitórias e sofri algumas perdas. Sempre tive a energia de continuar. Mas, enquanto eu ganho, enquanto estou feliz na vida, sei ajudar as pessoas e realizar a minha vocação.”