Os jesuítas de volta ao poder
19/05/14 12:06Há algo no ar quando uma revista como a “Rolling Stone”, que já colocou na capa Britney Spears adolescente de calcinha e sutiã segurando um boneco do Teletubbie, estampa em sua primeira página um senhor de 77 anos, cabelos brancos, crucifixo e solidéu.
A edição de fevereiro trouxe pela primeira vez um papa, o Francisco, como protagonista. O título remetia ao cancioneiro de Bob Dylan: “The Times They Are A-Changin’”.
Os tempos parecem mesmo estar mudando: para a Igreja Católica, que vê no papa pop um estanque contra a sangria de fiéis, e também para a Companhia de Jesus, de onde saiu o novo pontífice.
“Francisco tem dado vitalidade à Igreja. Não tem com quem o papa não fale”, diz o padre Carlos Contieri, 52.
Para Leandro Karnal, professor de história na Unicamp e autor de “O Teatro da Fé” (Hucitec), o papa jesuíta tem tino publicitário.
Lembra que Francisco é aquele que pega transporte público, cozinha a própria comida, recusa os sapatos bordô Prada de Bento 16, telefona para seu velho sapateiro, dispensa palacetes e paga do próprio bolso uma humilde hospedagem. Mas o papa é também aquele que nunca deixa de avisar a imprensa e os fotógrafos nessas ocasiões, diz.
“Um homem que exerce cargos é obrigado a jogar para a torcida. Ele não é um ator com experiência anterior [em teatro], como foi João Paulo 2º, ou um tímido que se assustava com massas, como Bento 16, mas é um homem com consciência de palco.”
Contieri discorda “plenamente” dessa opinião (“não é do feitio de Francisco”), mas diz incentivar a discussão. “Temos uma palavrinha que não é mágica: discernimento.”
O padre usa seu MacBook para preparar a missa do meio dia que seria celebrada na semana passada, em plena “super quinta” de protestos –que considera “legítimos”, desde que sem violência, diz, apertando os olhos sob o óculos de aro fino prateado ao sorrir.
Na sua mesa de trabalho, no Pateo do Collegio, um peso de papel em forma de caramujo segura anotações analógicas do religioso, que neste ano acumula a direção do Pateo, do Museu de Arte Sacra em Embu e do bicentenário de restauração da ordem jesuíta.
O “discernimento” jogou os jesuítas numa espiral de ascensões e quedas ao longo de cinco séculos.
Tal qual uma Coca-Cola dos grupos religiosos, a Companhia se disseminou pelos quatro cantos do mundo. Enviou seus “soldados de Cristo” para resistir à Reforma Protestante. Liderou com reis e à margem deles.
Em 2014, comemora 200 anos desde que a Igreja abriu-lhes a porta novamente, após quatro décadas de perseguição. Chega agora no topo de uma instituição com quase 2.000 anos, num mundo que parece ter dificuldade de lembrar do “post que bombou” dois dias atrás.
ERA UMA VEZ
Inácio de Loyola, um soldado basco que leu “A Vida de Cristo” após ter a perna destruída por uma bala de canhão, criou em 1534 a ordem dos jesuítas –uma das fortalezas de poder na era das navegações. São Paulo nasceu em torno do pátio do colégio controlado por um de seus padres, José de Anchieta, confundador da cidade que virou em abril o terceiro santo brasileiro
Na época, o problema era poder demais: com mais de 700 centros de ensino, os jesuítas eram mal vistos por parte da realeza europeia.
No dia 21 de julho de 1773, a Companhia de Jesus era pop, mas por motivos infames.
Seus seguidores, considerados muito poderosos, foram acusados de meter o bedelho em diversos governos. Reis se sentiram ameaçados e pressionaram o papa Clemente 14, que mostrou pouca clemência e baniu da Igreja a ordem religiosa.
No Brasil, a coisa ficou feia 15 anos antes. Ao longo de dois séculos, a Companhia elaborou gramáticas em tupi para propagar sua fé entre os indígenas e rivalizou com colonos que queriam escravizá-los. “Diziam que a Companhia construía um Estado dentro de um Estado”, resume Contieri.
Havia 2.617 membros espalhados pela América Latina Quando a ordem foi expulsa da colônia portuguesa.
O papa Pio 7 reabilitou o grupo em 1814 (voltaram ao Brasil 28 anos depois). Restavam cerca de cem membros sobreviventes à época da expulsão global. “Nesses 40 anos, o mundo deu uma guinada violenta. No século 16, o mundo é teocentrista, e governos, quase teocratas. Com a Companhia restaurada, estamos em pleno tempos das luzes”, diz Contieri.
CRISE DE SENTIDO
Hoje, o problema da Igreja Católica como um todo pode ser poder de menos. Os tempos estão mudando mais rápido do que nunca, reconhece o padre de espessa barba negra com chumaços brancos, cultivada há 30 anos, que lhe confere um certo ar de “gêmeo bom” do Zé do Caixão.
O desafio é não submergir no século 21. E os missionários de hoje têm uma tarefa e tanto pela frente, na “humilde opinião” do primeiro padre da família Contieri, originária de Valinhos (SP). “Precisamos ajudar as pessoas a encontrar o sentido da vida. Neste mundo bagunçado, a crise é a crise do sentido.”
A Companhia tem agora menos de 600 membros no Brasil. Questionado se sabia de cabeça quantos “calouros” moram hoje no centro da juventude jesuíta, em Campinas, Contieri ri. Não é tão difícil decorar. “Quatro!”
“Hoje tem procurado gente mais madura, nem tão jovem assim”, diz, ecoando em seguida uma diretriz da Igreja Católica contemporânea: “É infinitamente preferível qualidade a quantidade. Queríamos ter mais gente, mas não vamos vender a alma por causa de um número”.
O milagre da multiplicação de fiéis, contudo, é uma das esperanças depositadas na “era Francisco”.
HABEMUS PAPAM
No dia 13 de março de 2013, o “habemus papam” veio carregado de novidades.
Duas semanas antes, Bento 16 pegou o Santo Ofício pelo colarinho sacerdotal ao anunciar uma surpreendente “aposentadoria”. Antes dele, o eremita Celestino 5 havia sido o único papa a renunciar, e isso em longínquos 1294.
O jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio, escolhido pelo conclave de cardeais para substituir o alemão, estreou outras modalidades de papado. Após 23 Joãos, 16 Bentos e 12 Pios, virou o primeiro papa latino-americano e o primeiro Francisco –dupla homenagem a São Francisco de Assis, do voto franciscano de pobreza, e São Francisco Xavier, jesuíta pioneiro.
PRÓXIMOS CAPÍTULOS
Para Leandro Karnal, o professor da Unicamp, a Companhia tem fôlego para os novos tempos.
“Ela seria maior do que a Opus Dei ou os carismáticos? Difícil responder. Pelo menos a opinião geral expressa no cinema é mais simpática à Companhia, que gera filmes como ‘A Missão’, enquanto a Opus gera obras como ‘O Código da Vinci’.”
Os jesuístas, ele ressalta, ainda detêm forte influência na educação. No Brasil, controlam seis universidades (como a PUC-RJ e a gaúcha Unisinos) e 15 colégios (entre eles, o paulistano São Luís e o carioca Santo Inácio).
Segundo Contieri, a Companhia de Jesus passa por um processo de revisão, que vai determinar rumos para os próximos anos. A autocrítica está incluída no pacote, afirma.
Nesse sentido, não deixa de ser heterodoxo o convite para que Karnal, um ateu confesso que é referência no estudo sobre jesuítas, encerrasse um simpósio organizado pelo grupo na semana passada, com cerca de 70 doutores, num hotel próximo à avenida Paulista.
Se numa das noites o grupo serviu-se de medalhão com pasta e legumes, num jantar de confraternização, no sábado passado (9) a plateia digeriu pesadas críticas do professor Karnal. Como o fato de não haver na ordem representantes femininas –um equivalente a freiras e madres, por exemplo.
“Não está na pauta abrir espaço para mulher ser uma ‘jesuitina’. Há muitas possibilidades de viver nossa espiritualidade como leiga”, diz Contieri.
O acadêmico ainda comparou o polonês João Paulo 2, que foi ator na juventude, a Ronald Reagan e Arnold Schwarzenegger, políticos egressos de Hollywood. Sobre o alemão Bento 16, brincou: “Pensava seis vezes antes de sorrir”.
Um mal do qual, definitivamente, não padece seu sucessor.