Um rabino, um homem, quatro gravatas e o rock 'n' roll
26/11/13 21:01O rabino Henry Sobel, 69, vai trocar São Paulo por Miami no dia 22 de dezembro. O plano é ficar seis meses lá e seis meses cá. Voltará no ano que vem, para a Copa do Mundo e para o casamento da filha única, Alisha.
Sobel mora desde 1970 aqui –atualmente, num dúplex em Higienópolis, com forte presença da comunidade judaica e um dos metros quadrados mais caros de São Paulo.
Era um rabino cabeludo de 31 anos quando peitou a ditadura, confrontando a versão de que Vladimir Herzog havia se matado. Era um rabino ainda cabeludo de 63 anos quando furtou quatro gravatas de grife (Louis Vuitton, Armani, Giorgio’s e Gucci) na Flórida.
Quem sou eu? O rabino que ficou conhecido em todo o Brasil pelo sotaque norte-americano forte, a quipá vinho e a dedicação à defesa dos direitos humanos? Ou um malandro que rouba gravatas?
Feita na autobiografia “Um Rabino, Um Homem” (2008), a pergunta paira sobre a cabeça de Henry Sobel feito o solidéu vinho com cuidadosos apliques em dourado. Entrevistado de ontem no “Roda Viva” (TV Cultura), o quanto pôde ele evitou respondê-la.
Eu estava na bancada de entrevistadores, ao lado do ex-ministro da Justiça José Gregori e dos jornalistas Ricardo Kotscho (“Brasileiros), Laura Greenhalgh (“O Estado de S. Paulo”), Duda Teixeira (“Veja”) e Augusto Nunes, o apresentador. Dá para assistir aqui.
Antes, um parêntese: o “Roda Viva” estreou em 1986. Nasci um ano depois. Para minha geração, a do “sub-30”, Sobel é mais conhecido como o “cara das gravatas”, do sow-ta-kee um tanto caricato para quem mora há décadas no Brasil, da entrevista à “Playboy” nos anos 1990, dos casamentos celebrados de Luciano Huck e Angélica, Marta Suplicy e Luis Favre.
Sua luta pelos direitos humanos, sem dúvida bonita e divisora de águas, é ou desconhecida ou relegada a segundo plano pela juventude.
Vamos lá:
1975. Vladimir Herzog, comunista de carteirinha do PCB, diretor de jornalismo da TV Cultura, morreu nas dependências do DOI-Codi em São Paulo. Versão oficial: suicídio.
Herzog era judeu. A tradição judaica ordena que suicidas sejam enterrados com “desonras”, em área marginal do cemitério.
Só que um funcionário da CIP (Congregação Israelita Paulista), ao preparar seu corpo para o funeral, notou marcas de tortura. Como o primeiro rabino da hierarquia estava fora do país, foi para Sobel, segundo no comando, que ele relatou a descoberta.
O jovem líder religioso decidiu que Herzog merecia um enterro “normal”. Ou seja: cravou que fora assassinado pelo regime militar.
Corta para 2007. Em 23 de março, flagrado com as gravatas, Sobel passou uma noite na prisão, em Palm Beach, Flórida. Voltou ao Brasil após pagar fiança de US$ 3.000.
Os dias seguintes foram depois definidos como “massacre midiático”.
Ele virou o paciente da suíte 1.074 do bloco A do hospital Albert Einstein, onde se tratou do episódio de “descontrole emocional”.
Eventualmente, acabou destituído da presidência da Congregação –virou “rabino emérito”. Recentemente, se disse magoado por ter sido limado da comitiva que se encontrou com o papa Francisco.
CONFISSÕES
Em agosto, afirmou à Laura Greenhalgh, do “Estadão”, que falaria sobre algo pela primeira vez, que não tivera “coragem nem vontade” de confessar antes: o furto das gravatas não fora culpa de doença, e sim “uma falha moral minha”.
Não assinou embaixo da própria afirmação no “Roda Viva”.
Abordei o assunto no segundo bloco do programa. Fiz um paralelo com o deputado José Genoino (PT-SP). Os dois gozavam de ampla simpatia pela atuação na ditadura. Mas, anos depois, levaram uma pedrada da opinião pública, pelos casos do mensalão e do furto.
Perguntei se Sobel se sentia magoado ou temia que o episódio recente eclipsasse outras partes de sua trajetória, sobretudo entre os mais jovens.
Ele pareceu desconcertado. Pediu para responder depois.
“Há fatos na vida que fogem até mesmo da própria consciência. Acredito que o capítulo deve ser encerrado. Não estou feliz com o ocorrido, mas aconteceu, e peço perdão a todos”, disse no terceiro bloco, novamente instigado sobre o tema.
O ex-ministro Gregori saiu em defesa do velho amigo. Lembrou de santo Agostinho (354-430), que não levou uma vida lá muito santa antes de se converter –tinha amante e era afeito à literatura pagã, conforme a autobiografia “Confissões”. Ainda assim, o teólogo virou peça fundamental do catolicismo. Uma coisa não anulava a outra.
Disso quem assina embaixo sou eu. E, como jornalista, me interessam muito mais homens do que mitos. Se o rabino ignorar o fatídico furto das gravatas, está dando uma gravata em sua própria biografia, autorizada ou não.
ROCK
Antes do programa, na sala de maquiagem, Sobel chegou atrás de mim e perguntou a minha música preferida.
Assim de supetão, com uma maquiadora debruçada sobre mim (ainda sem saber se sairia dali me sentido um quadro de Picasso ou de Romero Britto), respondi a primeira que me veio à cabeça: “Construção”, de Chico Buarque.
Sorridente, ele disse que essa não sabia cantar. E cantarolou “La Vie en Rose”, de Edith Piaf, para mim.
Já na bancada do “Roda”, pouco antes do programa começar, Sobel deu um giro de 360° com a cadeira e se virou para mim enquanto ajeitavam o microfone em sua lapela.
– Anná Virrrrginiá. A qualidade da vida é serrr tolerrrante com os outrrros e intolerrrante consigo mesmo.
No final do programa, fui cumprimentar o rabino. Disse que agora ele me devia a música preferida dele. Sobel, então, falou que gostaria de ir num concerto de rock.
– Você me levarrr até um?
A vida, às vezes, pode ser mesmo rock ‘n’ roll.