O UFC dos 'renascidos'
31/10/13 14:09Em sermão narrado no Evangelho de Mateus, Jesus dava a cara a tapa: “Ao que te bate numa face, ofereça-lhe também a outra”.
Na igreja Renascer, o corpo todo é entregue a bofetadas. Nesta versão gospel do UFC, vale-tudo, literalmente, para conquistar mais fiéis.
O presbítero Baby, 33, está no centro do octógono alugado por R$ 3.000 e instalado no Renascer Hall, da igreja da bispa Sonia Hernandes (para quem lutadores como Vitor Belfort e Anderson Silva são “tudo de bom”).
Ele é um dos organizadores do URF (Ultimate Reborn Fight, ou “a melhor luta do renascido”), cuja segunda edição foi realizada no sábado, 26, no espaço na Mooca (zona leste de São Paulo).
NÃO É A MAMÃE
Baby nasceu Vagner Miguel e, até 2005, era um “desviado” que traficava de maconha a lança-perfume no Jaraguá (zona norte). “Bebia muito” até se converter “instantaneamente” durante um acampamento evangélico para jovens. Virou líder nacional do Reborn Team, a “equipe dos renascidos” da igreja.
Hoje, o faixa preta dá aulas de jiu-jítsu no Renascer Hall aos sábados, de graça, aberta a quem quiser chegar (outro instrutor ensina muay thai). Os atletas ouvem uma pregação após o treino.
Baixinho e atarracado, Vagner é Baby em homenagem ao bebê dos Silva Sauro, do seriado “Família Dinossauro” –aquele monstrinho que dá paneladas em quem “não é a mamãe”. Distribui sopapos no ringue, mas sempre com o intuito de evangelizar: a igreja vê no esporte uma isca para atrair públicos mais heterogêneos.
Essa pescaria começa na fila de homens com cabeleira tosada e manga curta (tamanho dois números menor, levando bíceps a pularem para fora feito restinho de pasta de dente no tubo). Também há crianças e mulheres –algumas com bebê no colo, outras com decote idem.
“Nós abominamos isso: roupa curta, indecência. Sensualidade não cabe na nossa visão”, diz Baby, cabeça balançando, a namorada ao alcance da visão (uma loira de calça comprida estilo legging, cabelos longos, lisos e platinados).
Entre UFC e URF, as diferenças não vão muito além de letras trocadas e a ausência das moças rebolativas de short curto na arena gospel.
Sobram sangue e nocaute nas lutas. As torcidas, exaltadas, não raramente subvertem o segundo mandamento: tomarás, sim, o nome do Senhor em vão, e também o da senhora sua mãe, sobretudo se o lutador de sua preferência estiver beijando a lona.
“Quem fala palavrão eu entendo que não é cristão”, me diz a assessora de imprensa da Renascer, que “ama” a pancadaria na igreja. “Ajuda a trazer os ímpios pra cá.”
Quem não frequenta igreja, no léxico evangélico, pode ser chamado de ímpio (“que tem desprezo pela religião”) ou secular (“que não cabe à Igreja, profano”), em duas definições do Houaiss.
Como na versão tradicional, há limites no URF: não pode cotovelada, golpe nas partes íntimas, agredir o rosto e “bate-estaca” (bater a cabeça do adversário repetidamente contra o chão), segundo Baby.
“Senhoooooras e senhooooores, irmãããããos e irmãããããs!”
No sábado, o evento começou às 20h25, com um pedido de oração e a saudação do pastor. Nem todos os competidores (que atendem por nomes como Eduardo Peludo, Beto Anjo Loiro e Felipe Cabelo) são evangélicos.
Do lado de fora, algumas barraquinhas vendem itens para o público bombado. Uma camisa de R$ 35 leva na estampa:
Li que fumar fazia mal
Parei de fumar
Li que beber fazia mal
Parei de beber
Li que bomba fazia mal
Parei de ler
Daniel Barone, 36, é “terminantemente” contra anabolizantes e afins, que vão contra as diretrizes do seu credo, diz.
Ele administra sua banquinha de produtos naturais trazidos de Belém do Pará, como o gel relaxante muscular (R$ 20) e o aromatizador bucal sabor framboesa (R$ 15). Também vende chaveiros com luvinhas de boxe (R$ 10).
Profissão: personal trainer. Bíceps: duas bolas de ferro sob cada braço. Igreja: Comunidade da Graça, no Tatuapé.
Daniel não vê incoerência entre professar sua fé e aderir à luta livre. “Futebol também é violento. Às vezes morre gente na torcida”, ele diz enquanto negocia um frasco de guaraná em pó com uma cliente em potencial.